Com este número tem início a publicação de Scientiæ Studia, periódico trimestral dedicado aos estudos filosóficos
e
históricos sobre a ciência, entendida na acepção ampla de ciência exata, natural e humana, e sobre o impacto da
aplicação técnica e tecnológica no conjunto da cultura e da sociedade. Nesse sentido, Scientiæ Studia está aberta
a
contribuições que visem entender a ciência como manifestação da cultura e expressão do estágio atual do processo
civilizatório, analisando os aspectos internos que podem caracterizar racional e autonomamente a ciência e
detendo-se também no conjunto dos valores sociais que dão sustentação às práticas científicas e tecnológicas, nas
quais se põe a questão da responsabilidade ética e social dos cientistas.
O número se inicia com o texto do Professor Michel Paty que até 2001 foi diretor científico da Equipe REHSEIS
(Recherches Epistémologiques et Historiques sur les Sciences Exactes et sur les Institutions Scientifiques) do
CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), vinculada ao DEA d'Epistémologie et Histoire des Sciences da
Université de Paris 7 - Denis Diderot. Todos os demais trabalhos publicados são de professores e pesquisadores que
realizaram estágios de doutorado-sanduíche, de pós-doutorado ou de pesquisa junto à Equipe REHSEIS. Scientiæ
Studia
presta, assim, uma homenagem a Michel Paty, inestimável mestre e colaborador entusiasta, que durante os últimos
quinze anos teve um papel decisivo para a consolidação das áreas de filosofia e história da ciência no Brasil. De
março de 1989 a fevereiro de 1991, ocupou a cátedra francesa junto ao Departamento de Filosofia da Universidade de
São Paulo, período no qual estreitou os laços de amizade e aprofundou seu sincero interesse pelo nosso país e por
nossa cultura. De volta à França, Michel Paty ocupou, por suas ações e empreendimento, o centro das relações entre
a França e o Brasil, principalmente em suas áreas de atuação: a filosofia e a história da ciência. Acolheu, no
seio da Equipe REHSEIS, sistemática e ininterruptamente estudantes, pesquisadores e professores brasileiros, nos
seus respectivos estágios de pesquisa, sempre com generosidade e dedicação, firmemente ancoradas no valor
filosófico da promoção da amizade entre os homens. Sua atuação, na orientação de teses e na discussão de
pesquisas, foi decisiva para que ele ocupasse um lugar privilegiado como difusor, no meio acadêmico brasileiro, de
um estilo de pesquisa acadêmica que valoriza a reflexão filosófica rigorosa sobre a ciência profundamente
enraizada no estudo de seu desenvolvimento histórico. Os textos aqui publicados possuem, por assim dizer, esse
estilo híbrido, essa mescla indistinta, de filosofia e de história e, nesse sentido, permitem apreciar a
influência entre nós do estilo de reflexão sobre a ciência praticado por Michel Paty.
É, portanto, com imensa satisfação que damos a público esta nova revista, na esperança de que Scientiæ Studia
contribua para a divulgação e o aprofundamento da compreensão filosófica e histórica da ciência, permitindo
ampliar os laços acadêmicos entre pesquisadores, grupos de pesquisa e professores universitários interessados na
reflexão crítica sobre o pensamento científico. https://doi.org/10.1590/S1678-31662003000100001
Não podemos conceber a compreensão e a comunicação de idéias sem fazer referência ao senso comum. Porém, por
outro
lado, todo conhecimento novo que seja importante precisa ultrapassar o senso comum e, portanto, romper com
ele.
Essas duas exigências, aparentemente contraditórias, podem ser conciliadas? E, se for o caso, de qual maneira?
Devemos, na verdade, reconhecer que, quando conhecimentos novos são adquiridos e bem compreendidos,
assimilados,
completamente inteligíveis, e até ensinados; quando neles nos baseamos para avançar na direção de
conhecimentos
ainda mais novos, estes que foram adquiridos participam da constituição de um senso comum, modificado,
diferente
do precedente, mas que tem tanto direito quanto este à qualificação de " senso comum ", exatamente no mesmo
sentido que o antigo. Desta maneira, o senso comum se enriquece pela assimilação dos conhecimentos
científicos.
Mostraremos como ele beneficia-se, de fato, das "ampliações" da racionalidade que permitem compreender de que
maneira o progresso do conhecimento torna-se possível. Vários exemplos examinados na área da física
contemporânea
(com a teoria da relatividade e a teoria quântica) ajudarão a explicitar concretamente a tese assim resumida.
Estas considerações têm implicações éticas, do ponto de vista da comunicação, pela possibilidade de
compartilhar
o
conhecimento em termos inteligíveis com os não-especialistas, através do senso comum submetido à crítica. Uma
reflexão epistemológica se faz necessária a respeito dos elementos de significação do conhecimento a serem
compartilhados prioritariamente.
Palavras-chave: Senso comum; Popularização; Compreensão; Comunicação; Racionalidade; Inteligibilidade;
Ética;
Física quântica;
Teoria da Relatividade
A biologia pré-darwiniana reconhecia nos seres vivos uma finalidade dupla: as diferentes estruturas orgânicas,
além de estar constituídas e articuladas de modo a integrar um ser organizado, possibilitavam também a
adequação
desse ser a seu entorno. Todavia, esta dupla conformidade a fim, que Cuvier ainda concebe como um único
conjunto
de condições que definem a própria possibilidade de um organismo, na biologia contemporânea aparecerá cindida
em
duas ordens de fenômenos diferentes. Assim, após a identificação do ponto de inflexão na história das ciências
da vida, no qual se gerou essa cisão, investigamos neste trabalho as condições conceituais que a exigiram e
possibilitaram. Propomos como resposta que essa "mitose conceitual" teve sua razão de ser no fim da idéia
clássica de economia natural; e sugerimos ainda que a mesma deve ser considerada no contexto de uma mudança no
ideal de ordem natural próprio da história natural.
Palavras-chave: G. Cuvier; C. Darwin; C. Bernard; Teleologia; História da biologia
A obra de Pierre-Louis Moreau de Maupertuis abrange os domínios da geometria, da física e da astronomia, mas
também explora um tema biológico central da agenda científica e filosófica do século XVIII: o problema da
geração dos organismos. No Sistema da natureza (1752), o autor apresenta uma ampla teoria que pretende
explicar,
a partir de um princípio gerativo universal, como os organismos atuais são gerados, como as espécies podem
conservar-se ao longo do tempo e como ocorre a formação de novas espécies a partir de uma dada linhagem de
organismos. Com base em tais explicações, Maupertuis apresenta certas conjecturas sobre a origem dos primeiros
organismos e das primeiras espécies que serão o objeto central deste artigo. Segundo nossa interpretação,
Maupertuis explorou o problema das origens da vida e das espécies a partir de dois quadros teóricos distintos,
que designaremos como quadros metafísico e físico das origens. No primeiro, a ação de Deus é decisiva para a
produção dos primeiros organismos e das primeiras espécies, mas no segundo essa mesma produção é explicada
conjecturalmente a partir de uma concepção natural e atomista.
Palavras-chave: Geração; Origem da vida; Origem das espécies; Epigênese; Preformação; Transformismo; Evolução;
Mecanicismo; Maupertuis
A carta, da qual publicamos aqui a tradução, faz parte da correspondência mantida entre Galileu Galilei e
Fortunio Liceti durante 1639 e 1640, na qual se desenvolve uma polêmica acerca da luz secundária ou luz
cinérea da Lua, observada quando esta se encontra na fase crescente. Já em 1610, annus mirabilis, por ocasião
do anúncio das primeiras observações telescópicas no Sidereus nuncius, Galileu adiantara sua explicação para a
ocorrência da iluminação secundária da Lua (cf. E. N., III, p. 72-5). Essa mesma explicação seria retomada no
Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo,1 em [92] da Primeira Jornada, quando Galileu apresenta a
sexta congruência entre a Terra e a Lua, a saber, que elas se iluminam mutuamente refletindo a luz do Sol; e a
seguir, de [112] a [124], onde Galileu discute e explica, com base nessa congruência, o problema da iluminação
lunar, expondo claramente sua tese de que a luz secundária da Lua é devida ao reflexo dos raios solares pela
superfície terrestre. Apesar da plausibilidade e correção da explicação dada por Galileu, os filósofos
tradicionalistas continuaram a inventar os mais variados subterfúgios para contradizê-lo, como Fortunio
Liceti, um peripatético declarado, que publica em 1639 um livro intitulado De lapide bononiense (Sobre a pedra
bolonhesa), no qual atribui a luz secundária da Lua a minerais fosforescentes e a uma dispersão da luz solar
pelo ar ambiente lunar, questionando ao mesmo tempo a correção da explicação de Galileu. Instado pelo príncipe
Leopoldo de Medici, na carta de 11 de março de 1640 (cf. E. N., XVIII, p. 165), a emitir seu parecer e a
responder às críticas que lhe eram dirigidas por Liceti, Galileu responde, em 31 de março de 1640, "do meu
cárcere de Arcetri", com uma longa carta de mais de 50 páginas, endereçada ao príncipe Leopoldo. Essa carta
fulgurante, conhecida sob o título de "Sopra il candore della luna" ("Sobre o candor da Lua") (cf. E. N.,
VIII, p. 489-542), ditada por Galileu a seu jovem assistente Vicenzo Viviani, seria seu último documento
científico, no qual ele, então cego, reconstruía na memória o conjunto de suas observações lunares.
[249] Dentre as maneiras seguras de conseguir a verdade está a de antepor a experiência a qualquer discurso,
assegurando-nos que nele, pelo menos ocultamente, não esteja contida a falácia, não sendo possível que uma
experiência sensível seja contrária ao verdadeiro; e este é também um preceito estimadíssimo por Aristóteles,5
e há muito anteposto ao valor e à força da autoridade de todos os homens do mundo,6 da qual V. Sa. mesma
admite que não só não devemos ceder à autoridade dos outros, mas devemos negá-la a nós mesmos, toda vez que
encontramos que o sentido nos mostra o contrário. Ora, Exmo. Sr., seja dito aqui com sua boa paz, que me
parece que estou sendo julgado como contrário ao filosofar peripatético por aqueles que se servem erradamente
do acima referido preceito, puríssimo e seguríssimo, isto é, que pretendem que o bem filosofar seja o receber
e sustentar qualquer que se queira das afirmações e proposições escritas por Aristóteles, a cuja absoluta
autoridade submetem-se, e para a manutenção da qual se induzem a negar experiências sensíveis, ou a dar
estranhas interpretações aos textos de Aristóteles, para esclarecimento e limitação dos quais muito
freqüentemente farão dizer ao próprio filósofo outras coisas não menos extravagantes, e certamente
distanciadas da sua imaginação. Não é absurdo que um grande artífice tenha preceitos seguríssimos e
perfeitíssimos na sua arte, e que por vezes ao operar erre em algum particular; como, por exemplo, que um
músico ou um pintor, possuindo os verdadeiros preceitos da arte, produza na prática alguma dissonância ou
inadvertidamente algum erro de perspectiva. Eu, portanto, porque sei que tais artífices não apenas possuíam os
verdadeiros preceitos, mas eles próprios haviam sido seus inventores, vendo qualquer falha em alguma de suas
obras, devo considerá-la como bem feita e digna de ser sustentada e imitada, em virtude da autoridade de seus
autores? A isto certamente não prestarei meu assentimento. Quero acrescentar por ora apenas...
A carta, cuja tradução é aqui apresentada, situa-se no corpo da volumosa correspondência mantida entre
Descartes e Mersenne que se inicia em 1629. Nesse mesmo ano, Descartes, instalado na Holanda, manifesta
interesse pelo estudo da medicina. Sua primeira referência ao início dos estudos em anatomia pode ser
encontrada na carta a Mersenne de 18 de dezembro de 1629. No ano seguinte, o filósofo mostra-se
particularmente preocupado com a doença de Mersenne e declara a sua intenção de construir uma medicina
"fundada em demonstrações infalíveis" (AT, I, p. 105-6). Esse projeto, à medida que Descartes avançava em seus
estudos, foi sendo alterado, de forma a estruturar uma medicina que considerasse o homem como um composto
corpo-alma, e não como puro mecanismo. Nessa concepção de medicina, questões concernentes à glândula pineal
têm extrema importância, uma vez que, por meio dela, como será visto mais adiante, Descartes explica como nos
movemos e como sentimos.
Não estranharia que a Glândula [49] Conarium se encontrasse corrompida na dissecação dos letárgicos, pois ela
se corrompe tão prontamente em todos os outros; e querendo vê-la, em Leiden, há três anos, em uma mulher que
estava sendo anatomizada, ainda que eu a procurasse com muita curiosidade, e soubesse muito bem onde ela devia
estar, como estando acostumado a encontrá-la nos animais recém abatidos sem nenhuma dificuldade, todavia me
foi impossível reconhecê-la. E um velho professor que fazia essa anatomia, chamado Valcher, confessou-me que
jamais havia podido vê-la em nenhum corpo humano; creio que isso vem do fato de serem consumidos, comumente,
alguns dias para ver os intestinos e outras partes, antes de abrir a cabeça.
Sabemos pelos noticiários que a Clonaid, empresa de biotecnologia, divulgou ter realizado, até agora, a
produção (ou reprodução difícil decidir neste caso) de três clones humanos. Nenhuma prova isenta foi
oferecida e a comunidade científica permanece cética quanto à realidade do feito. O leitor pode facilmente
encontrar mais detalhes sobre o assunto no amplo material jornalístico acessível na rede, sobretudo após o
anúncio do primeiro clone em 26 de dezembro de 2002.
Desde 1996, o médico anatomista alemão Gunther von Hagens vem promovendo a exposição "Os mundos do corpo
exibição anatômica do homem real" ("Body worlds the anatomical exhibition of real human") no Japão,
Alemanha, Áustria, Bélgica, Londres e Seul. O evento já foi visitado por pelo menos 8 milhões de pessoas e
nele são apresentados 200 exemplares anatômicos (25 corpos e 175 partes) conservados a partir de uma nova
técnica para a conservação de órgãos e estruturas do corpo humano, chamada por Hagens, seu idealizador, de
plastinização (plastination).