É com satisfação que damos a público o segundo número de Scientiae Studia dedicado, em grande medida, a questões
sobre a ciência contemporânea, excetuados os Documentos científicos que continuam com seu cunho historiográfico,
publicando uma carta de Johannes Kepler sobre sua "guerra" para decifrar a órbita de Marte e um texto de Alfred
Russel Wallace que desempenhou papel crucial para o anúncio conjunto da teoria da evolução das espécies feito por
ele e Charles Darwin.
Abre este número o artigo do Professor Hugh Lacey, que é atualmente Professor Titular de Filosofia do Swarthmore
College, Pensilvania, Estados Unidos. Hugh Lacey foi docente do Departamento de Filosofia da Universidade de São
Paulo no triênio de 1969 a 1971, quando lecionou a disciplina de filosofia da ciência, introduzindo a perspectiva
analítica anglo-saxã entre nós, num trabalho que se dedicava, nessa época, a questões de filosofia e história da
física relativas aos conceitos fundamentais de espaço e tempo, tratadas com rigor lógico e precisão lingüística.
Nasce, nessa época, seu interesse pela filosofia da psicologia, interesse que aprofundou nos Estados Unidos, onde
fixou-se a partir de 1972. Durante as décadas de 70 e 80, Hugh Lacey retornou diversas vezes ao nosso país a
convite de instituições superiores de ensino para cursos de pós-graduação, seminários de pesquisa e colóquios
sobre assuntos ligados à filosofia da psicologia: a polêmica entre Chomsky e Skinner a propósito da aquisição da
linguagem; o alcance experimental da psicologia comportamentalista; a indispensabilidade da intencionalidade (e de
conceitos mentalistas) para a análise do comportamento humano etc. A partir do anos 90, Hugh Lacey ampliou os
horizontes de sua reflexão filosófica trazendo para o centro de suas preocupações a questão dos valores e sua
relação com a atividade científica. Nessa nova fase, destacam-se as visitas ao Departamento de Filosofia,
financiadas pela FAPESP, no segundo semestre letivo de 1996, 1998 e 2000; delas resultou a publicação de Valores e
atividade científica e de Psicologia experimental e natureza humana.
Os demais textos são de participantes do Projeto Temático "Estudos de filosofia e história da ciência" e mantêm,
em variados graus, um diálogo com o texto de Hugh Lacey. Assim, o artigo de Valter Bezerra se volta para a
história da física do século XX e analisa um aspecto particularmente controverso a renormalização da física do
campo pelo prisma da metodologia, dos valores cognitivos e da teoria da racionalidade científica. Cabe registrar
que neste ano de 2003, são lembradas duas datas históricas mencionadas no artigo. Transcorrem 30 anos da
descoberta das correntes neutras, no Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire CERN, o que representou uma
corroboração importante da teoria que unifica o eletromagnetismo e a interação nuclear fraca. Também completam-se
20 anos da descoberta (igualmente no CERN) das partículas W e Z, o que constituiu a corroboração tida como
decisiva para a aceitação daquela teoria pela comunidade científica. Essas descobertas marcam o apogeu da era da
teoria do campo renormalizável que é mapeada por Valter Bezerra. Trabalhando os valores científicos sob a
perspectiva do modelo reticulado de racionalidade, o artigo estabelece um diálogo com a temática tratada no texto
de Hugh Lacey. Diferente é a aproximação de Marcelo Alves Ferreira em seu texto que, ao discutir a
indispensabilidade da teleologia na investigação biológica, alinha-se às tentativas de explorar uma estratégia de
pesquisa organicista como alternativa à estratégia materialista e reducionista que preside a biologia atual e seu
braço experimental, a biotecnologia. Fecha este número de Scientiae Studia uma nota crítica sobre os problemas
científicos e éticos criados pelos transgênicos, que são precisamente os produtos exemplares da biotecnologia.
Essa nota está inspirada na "epistemologia engajada" de Hugh Lacey, que se volta para os problemas atuais da
ciência, e nas suas diversas intervenções no debate sobre o uso de transgênicos na agricultura e seu impacto
sociocultural. Tendo como pano de fundo a reflexão de Lacey sobre o papel dos valores cognitivos e sociais na
organização da pesquisa científica, a nota aponta para restrições éticas e epistêmicas à tecnociência.
Scientiae Studia presta assim homenagem a Hugh Lacey, pesquisador incansável e hábil polemista, que teve
influência
seminal para o tipo de reflexão interna rigorosa, inspirada na filosofia analítica de língua inglesa, mas que ao
mesmo tempo olha atentamente para as dificuldades e desafios postos pela ciência contemporânea, em especial no que
diz respeito a suas responsabilidades sociais e éticas.
https://doi.org/10.1590/S1678-31662003000200001
É útil trabalhar com um modelo das práticas de pesquisa científica segundo o qual existem três momentos-chave
nos quais é preciso fazer escolhas, a saber, os momentos de: (i) adotar uma estratégia (ou regras
metodológicas), (ii) aceitar teorias e (iii) aplicar o conhecimento científico. Os valores sociais podem ter
papéis legítimos e importantes no primeiro e no terceiro momentos, porém não no segundo, quando apenas os
valores cognitivos e os dados empíricos disponíveis têm papéis essenciais. A distinção entre valores
cognitivos
e valores sociais é necessária para sustentar este modelo e, portanto, para apoiar a visão de que o
conhecimento
científico imparcial pode ser o resultado de um processo influenciado por valores sociais, e também para
indicar
como a pesquisa deve ser conduzida de modo que o ideal de neutralidade seja sustentado mais plenamente. A
maior
parte deste artigo se dedica a explicar em detalhe como a distinção deve ser traçada.
It is useful to work with a model of the practices of scientific research that proposes that there are three
key
moments at which choices must be made: the moments of (i) adopting a strategy (or methodological rules), (ii)
accepting theories, and (iii) applying scientific knowledge. Social values may have legitimate and important
roles at the first and third moments, but not the second, where only cognitive values and available empirical
data have essential roles. The distinction between cognitive and social values is needed to maintain this
model,
and thus to sustain the view that impartial scientific knowledge can be the outcome of a process influenced by
social values, and to indicate how research must be conducted if the ideal of neutrality is to be upheld more
fully. Most of the article is devoted to explaining in detail how the distinction is to be drawn.
Cognitive values; Social values; Science; Control of nature; Impartiality; Neutrality; Autonomy;
Methodological
rules; Strategies; Agroecology
Um exame do desenvolvimento da teoria quântica do campo, no período que vai de 1927 a 1971, evidencia o fato
de que as técnicas de renormalização desempenharam um papel fundamental ao longo de todo o processo. Em
particular, a renormalização reabilitou a eletrodinâmica quântica no final dos anos 40 e, depois, também
reabilitou a teoria quântica do campo como um todo e ajudou a consolidar as teorias de gauge no início dos
anos 70. O sucesso da renormalização foi tal que ela passou gradualmente de mero dispositivo teórico ad hoc à
condição de critério para a construção e avaliação de teorias na física do campo. Um dos objetivos deste
artigo é mostrar que essa transformação no estatuto metodológico da renormalização pode ser entendida no
contexto do modelo reticulado de racionalidade de Larry Laudan. Apesar do extraordinário progresso teórico e
empírico alcançado, porém, sempre houve polêmicas acerca do lugar que a renormalização deve ocupar dentro da
estrutura conceitual da disciplina. Essas polêmicas giram em torno do fato de que a renormalização
aparentemente vai contra um valor cognitivo considerado fundamental: a consistência. O segundo objetivo deste
artigo é mostrar como o modelo reticulado também permite lançar luz sobre essa questão. Procuramos expor em
que sentido foi racional adotar a renormalização na física de partículas e campos apesar de existir o problema
da inconsistência. Para isso nos valemos das teses do modelo reticulado, complementadas por teses de Putnam,
Quine e da teoria coerencial da justificação.
Metodologia científica; Racionalidade científica; Modelo reticulado; Valores cognitivos; Teoria quântica do
campo; Teoria de gauge; Renormalização; Inconsistência
A study of the development of quantum field theory, in the period that goes from 1927 to 1971, highlights the
fact that renormalization techniques played a fundamental role during the whole process. In particular,
renormalization rehabilitated quantum electrodynamics in the late 40s and, later, also rehabilitated quantum
field theory as a whole and helped consolidating gauge theories in the early 70s. The success of
renormalization was such that, from its beginnings as a mere ad hoc theoretical device, it gradually earned
the condition of a criterion for the construction and appraisal of theories in field physics. One of the aims
of this article is to show that this change in the methodological status of renormalization can be understood
in the context of Larry Laudan's reticulational model of rationality. In spite of the extraordinary
theoretical and empirical progress achieved, however, there were always polemics regarding the place that
renormalization should occupy within the conceptual structure of the discipline. These polemics revolve around
the fact that renormalization apparently goes against a cognitive value that is regarded as fundamental,
namely, consistency. The second aim of this paper is to show how the reticulational model helps to throw light
upon this question as well. We attempt to show in which sense it was rational to accept renormalization in
particle and field physics despite the problem of inconsistency. To this end we make use of the theses of the
reticulational model, supplemented with theses from Putnam and Quine, and from the coherence theory of
justification.
O estatuto do pensamento teleológico nas ciências biológicas contemporâneas é foco de controvérsia. O programa
reducionista busca sua eliminação, persistindo, no entanto, perspectivas instrumentalistas e realistas que
buscam justificar sua permanência. Este artigo procura defender as razões para a permanência do pensamento
teleológico, sobretudo aquelas de fundo realista.
The status of teleological thought in contemporary biology entails controversy. The supporters of the
reductionist programme in biology strive to eliminate it, whereas instrumental and realist interpretations of
the problem seek a justification for its permanence. This article tries to defend the reasons for the
permanence of teleological thought, particularly those of realist background.
Nos últimos dias de 1604, Kepler escreve para seu mestre Mästlin uma carta na qual solicita seu parecer sobre
a correta forma orbital do planeta Marte, trabalho que vinha desenvolvendo desde 1601, alguns meses após a
morte de Tycho Brahe e a admissão de Kepler como matemático imperial da corte de Rodolfo II em Praga, cargo
que pertencera anteriormente a Brahe. Essa carta pode ser inicialmente entendida como apenas uma espécie de
"cobrança" por parte do discípulo com o objetivo de romper com o comportamento reticente do mestre. Afinal,
Mästlin manteve-se calado sobre as investigações físicas propostas por seu antigo aluno por um período
considerável de tempo. Com efeito, Mästlin não respondia a Kepler desde 1599, só voltando a escrever-lhe em 28
de janeiro de 1605, após mais de cinco anos sem mandar qualquer resposta às insistentes cartas enviadas por
Kepler.
Devido a teu contínuo silêncio, grande mestre Mästlin, muitas vezes fui forçado a ter cuidado em te escrever.
Acontece, no entanto, que me desespero na guerra, pois quanto mais escrevo, tanto menos consigo. Tu deves ter
lido meus trabalhos sobre óptica, dos quais já remeti, como presente meu a Frankfurt, exemplares (um,
juntamente com outros quatro para ti, pelo bibliotecário Célio como teu depositário, rogo para que trates com
o doutor Besoldo que pediu uma cópia). Se leste minha concepção sobre a estrela nova, a qual já recebeste,
não estarás motivado a escrever-me; mas ao menos por causa de S. Majestade Cesar, para o qual são agradáveis
os escritos desse modo, indaga-lhe sobre várias coisas; escreva-me algo. Pergunta por ti Rosalino, cujos
escritos agora aceita S. Majestade Cesar; essa matéria é comum aos matemáticos, e não compreendê-la representa
um crime de deserção.
Em fevereiro de 1858, o naturalista Alfred Russel Wallace encontrava-se na ilha de Gilolo capturando insetos
para vender, quando uma doença o impediu de continuar trabalhando. O ofício de entomólogo financiava seu
verdadeiro objetivo: levantar dados para fundamentar uma teoria sobre a origem das espécies, motivação que o
conduzira da Inglaterra para a floresta amazônica e, naquele momento, para o arquipélago Molucas (região da
Nova Guiné, Oceania). Durante o repouso forçado, ele pôs-se a refletir sobre a natureza viva e, subitamente,
ocorreu-lhe uma intuição, assim descrita em recordações datadas de 1905:
Um dos mais fortes argumentos para provar a distinção original e permanente das espécies, repetidamente
aduzido, é que as variedades produzidas em estado doméstico são mais ou menos instáveis e, freqüentemente, se
deixadas a si mesmas, têm uma tendência a retornar à forma normal da espécie parental; esta instabilidade é
considerada uma peculiaridade característica de todas as variedades (mesmo das que ocorrem entre animais
selvagens, em estado natural) e constitui uma provisão para conservar imutáveis as espécies (originalmente
criadas distintas).
Organismos geneticamente modificados (OGM), mais conhecidos como transgênicos, são artefatos tecnológicos. Boa
parte dos problemas que discutiremos neste ensaio gira em torno desta difícil distinção entre esses seres
artificiais e os chamados seres naturais. A tradição filosófica ocidental legou, principalmente a partir de
Aristóteles, um critério para distinguir estas duas modalidades de seres. De forma simplificada, o critério é
aplicado essencialmente a sua origem ou forma de produção: são naturais os seres que trazem em si mesmos a
causa
de sua origem e de seu desenvolvimento (ou, em termos aristotélicos, a causa de sua mudança, o que inclui a
geração e a corrupção, o nascimento e a morte) e são artificiais aqueles cuja existência depende da ação
humana.